A Imagem do Invisível
Por S. Excia. Revma. Dom Chrisóstomo
Arcebispo do Rio de Janeiro e Olinda-Recife
Igreja Ortodoxa Autocéfala da Polônia no Brasil
A Teologia da Beleza
o interior das Igrejas Ortodoxas, em qualquer parte do mundo onde
ela esteja, existe algo que ao primeiro olhar chama a atenção: são os
ícones. Um elemento fundamental e expressão da vida espiritual da
Igreja. Associado à arquitetura, aos afrescos, aos mosaicos, aos
cânticos, às leituras, às incensações e baos movimentos rituais, o ícone
tem uma função que, por um lado é didática e pedagógica e, por outro,
profundamente sacramental. Ele é parte integrante e necessária nos
rituais e celebrações da igreja Ortodoxa.
Se numa primeira dimensão o íicone tem o
papel, através das cores formas e luzes, de proclamar e transmitir, tal
qual as Sagradas Escrituras e os hinos litúrgicos, os Mistérios
revelados por Deus aos homens, em outra dimensão, mais profunda, ele é
uma perfeita expressão da fé e da vida espiritual da Igreja. E apesar de
sua beleza ele não é feito para o mero embelezamento, o ícone é arte
sagrada, na verdade, uma perfeita presença espiritual. A sua beleza, a
sua luz vem de algo não natural. O ícone não tem o propósito de ser um
retrato naturalista de um episódio ou alguém. A idéia que preside o
trabalho do iconógrafo — e é por isso que esta palavra significa: aquele
que escreve o ícone - é o de proclamar o Plano de Deus, a economia
divina da Salvação, a graça santificante que está presente no Santo ou
momento da história sagrada que o ícone descreve.
Portanto, considerando estas duas dimensões,
o iconeé teologia em toda sua profundidade. E nunca, mesmo quando
pendurado na parede da casa de um fiel, o icone poderá estar
desvinculado da Tradição Apostólica, dos Santos Padres, dos
Dogmas de fé e das fórmulas sacramentais da Igreja. Não separado
deste conjunto todo, ele permanecerá perfeitamente sacral e litúrgico. O
ícone, de fato, convida o fiel ortodoxo a uma realidade que está para
além deste mundo, uma realidade espiritual, convida-o à santidade. Por
isso o ícone é chamado de “janela aberta para o céu” ou “lugar de
encontro”. Como diz um Excelente mestre da iconografia: “Deus Se abaixa e
Se revela ao homem; o homem responde a Deus se elevando, concordando
sua vida com a revelação recebida. Na imagem ele recebe a revelação e
pela imagem ele responde a esta revelação na medida em que nela
participa”.
Uma arte sacra milenar
A palavra ícone deriva do termo grego
“eikón” que significa de modo geral imagem e poderia ser usada também em
relação aos mosaicos e aos afrescos. Mas comumente é usada para as
pinturas feitas em madeira com uma complexa técnica, mais que milenar.
O ícone encontra o seu apogeu no Império
Bizantino. Mas ao contrário do que alguns intelectuais e críticos de
arte dizem não é a expressão artística de uma época, ele é mais do que
isso, O ícone é sempre presente e atual porque, na verdade, transcende
qualquer expressão meramente cultural e é atemporal porque fala de uma
realidade que está fora do tempo.
Antes da iconografia encontrar o seu
amadurecimento artístico como hoje a conhecemos, e isso vai acontecer
por volta do século IV, os cristãos dos primeiros tempos já utilizavam
alguns tipos de trabalhos pictóricos para expressar a sua fé. Estamos
falando das rudimentares pinturas de retratos nas catacumbas, os
desenhos de cruzes, de palmas ou ainda as representações de peixe, de
cordeiro ou do bom-pastor para simbolizar o Cristo.
Em termos de desenvolvimento artístico o ícone é uma síntese das artes grega, romana, síria, palestina, egípcia e persa.
Pouco a pouco com uma idéia mais ou menos
comum de se identificarem e se afirmarem enquanto cristãos esses
diferentes povos foram contribuindo com sua cultura local para a
elaboração de uma arte na qual vieram todos, mais tarde, a se
reconhecer.
Quando o Imperador Constantino liberta o
cristianismo das amarras de uma religião perseguida e funda a capital do
Império na cidade de Constantinopla. Há uma espécie de explosão: Muitos
aderem abertamente a “nova” religião do Império, principalmente
funcionários do Estado e pessoas das classes mais abastadas. Todos
querem fazer parte deste movimento e colaboram com. tudo o que podem.
Arquitetos, pintores e artistas serão estimulados a contribuírem com sua
arte. As igrejas, as catedrais, os monumentos são construídos com toda
majestosidade para expressar o fulgor desta fé, já então três vezes
centenária, O icone terá um lugar de honra neste triunfo e terá a sua
técnica e regras definitivamente fixadas.
Uma história sagrada
Mas é quase certo que, na altura desta
narrativa, haverá aquele que pergunte: Mas Deus não proibiu se fazer
imagens de adoração, como consta em (Ex. 20, 4), (Lv 26, 1), (Dt. 4 16,
23; 5, 8; 9, 12; 27, 15). Verdade, e este argumento vai ser usado, mais
tarde também pelos hereges iconoclastas 2 dos séculos VII e IX. E certo
que esta ordem é um preceito escripturístico. Mas é bom lembrar que o
Senhor também mandou construir uma Arca e sobre ela esculpir dois
Querubins de ouro (Ex. 25, 18-22). Os cristãos ortodoxos consideram esta
segunda ordem como uma prefiguração do mistério que só será revelado
mais tarde, o Mistério da Encarnação.
A proibição é parte da pedagogia divina para
um povo ainda inseguro na fé, ao qual Deus quer ensinar o culto
monoteísta ao Deus Único e Verdadeiro. Este Deus não tem forma nem
aparência, Ele é Puro-espírito. O povo da Antiga Aliança, precisava de
urna Lei que os corrigisse da idolatria.
Corria-se o risco, naqueles tempos, de se
fazer uma imagem qualquer deste Deus Puro-espírito e se trocar o
significado peio significante.
Mas na Nova aliança, com um povo já
amadurecido no culto ao Deus Único, Deus revela-Se, mostra-Se, torna
forma na nossa natureza carnal. Mas continua sendo o Deus Puroespírito.
Esta é a realidade primeira do ícone a Encarnação. Por isso um grande
teólogo ortodoxo afirma: “...depois da Encarnação, Cristo liberta os
homens da idolatria, suprimindo cada imagem não negativamente, mas de
modo positivo, revelando a verdadeira figura humana de Deus” . Ou seja
com traços, cores e luzes do mundo da natureza mostra-se uma realidade
que está para além do natural.
E atenção, não se trata de culto de adoração
ao ícone. Este culto de Doxa é exclusivo a Deus. A relação com o ícone é
de veneração, venera-se os ícones, tem-se um enorme respeito pelos
ícones porque sabemos que eles revelam a graça e o amor de Deus
presentes na pessoa do Cristo, da Santíssima Virgem e dos Santos que
foram amigos do Cristo porque colocaram em prática a Sua vontade. Como
todo cristão deveria também fazer. Isso também serve a todos corno um
alerta. E para o cristão isso é tão importante que no primeiro domingo
da Grande Quaresma, a que nos prepara para a Festa da Páscoa, onde se
comemora a Ressurreição de Cristo e a vitória da carne sobre a morte,
celebrasse o Domingo da Ortodoxia. Para rememorar o Concílio que
restabeleceu culto das imagens e da verdadeira fé.
Além de tudo isto a arte da iconografia, acredita-se, também é a realização da expressa vontade de Deus.
Uma Tradição da Igreja diz que o rei Abgar
da cidade de Edessa, que estava doente com lepra, teve um sonho no qual
ele via Nosso Senhor sendo perseguido, aprisionado e martirizado. Então
ele envia um emissário em busca deste que ele considerava um grande
Profeta visto em seu sonho. Quando
o emissário do rei, depois de muito procurar, afinal encontra com
Jesus Lhe diz: “o meu rei pede que o Senhor venha comigo pois em nosso
país o Senhor estará protegido, o meu rei não deixará que nada Lhe
aconteça”. Jesus responde: que agradecia ruas não podia aceitar, afinal
Ele veio para os Seus e além disso era preciso que Ele cumprisse a
Vontade do Pai. O emissário replica que o seu rei era muito rigoroso e
portanto ele não poderia voltar de mãos vazias. Então Nosso Senhor Lhe
pede um lenço que ele trazia e com este lenço enxuga o rosto, dobra- o e
devolve ao emissário pedindo que ele o entregasse ao rei, o emissário
assim faz. Quando o rei recebe o lenço desdobra-o e ao interior do lenço
vê impresso a imagem da Santa Face e fica curado de sua doença.
Esta imagem é chamada pelos ortodoxos de
“Aquiropifa” (não pintado por mãos humanas). Esta imagem ficou na cidade
de Edessa até o ano 944, quando então o Imperador de Bizâncio manda
buscá-la, para com ela fazer uma procissão em volta das muralhas da
cidade, a fim de protegê-la do ataque dos turcos e este expediente
realmente teve sucesso. Até hoje no dia 16/ 29 de agosto celebra-se a
Festa da transladação de Edessa para Constantinopla do icone Aquiropita.
Uma outra Tradição diz que o Evangelista São
Lucas teve uma visão na qual a Santíssima Virgem Maria lhe aparece
pedindo que ele pintasse uma imagem em sua memória. Nesta visão ela
mostra a ele, claramente, como realizar todas as etapas do trabalho, Ele
então, seguindo as instruções, pinta o Icone que mais tarde recebeu o
nome de Odighítria (a que indica o caminho), também pintou um segundo
que será chamado de Eleúsa (Ternura) e ainda um terceiro ícone. A
Santíssima Virgem os viu aprovou-os e Abençoou-os, conferindo às tais
pinturas sua graça e poder espiritual. Esta é a origem dos cânones
referentes a composição dos ícones. Acredita-se que ao se escrever um
ícone, se todas as regras forem respeitadas, este poder espiritual
derramado pela Mãe de Deus será retransmitido para o novo trabalho.
Um sacro-ofício
Para que o trabalho chegue a um bom termo é
necessário que o iconógrafo jejue, abstendo-se de relações sexuais e de
todo alimento de origem animal, ore com fervor, estude a história do
Santo ou das passagens relativas ao tema da Festa que ele vai pintar,
que tenha se confessado e comungado recentemente, e principalmente que o
seu interior esteja em silêncio e paz.
É preciso encontrar uma madeira nobre que
não dê bicho, não apodreça, nem empene. Lixa-se e aplica-se uma camada
de gelatina incolor, deixando-a descansar por 12 horas. Depois se aplica
uma gaze bem fina embebida em cola de coelho (cola de madeira) deixa-se
descansar por 12h. Em seguida aplica-se, com um pincel, uma mistura de
água, gelatina e gesso cré, deixa-se descansar 12h. Este processo é
repetido várias vezes até a gaze ser inteiramente recoberta. Esta
cobertura branca é lixada e depois se aplica mais algumas camadas desta
mistura de gesso cré, sempre deixando descansar por 12h entre cada
aplicação. Lixa-se novamente e depois mais uma vez com uma lixa mais
fina que houver, até que a prancha fique completamente lisa, não tenha
nenhuma imperfeição e adquira uma aparência de porcelana. Ela então
estará pronta para receber o desenho.
É preciso se estudar o original do modelo
que se quer pintar. Descobrir as formas geométricas, retângulos,
quadrados, círculos, triângulos e etc, ocultas no desenho. Passar estes
traços para a prancha onde se pintará, severamente respeitando estas
proporções. Esboçasse dentro deste traçado o desenho que se quer. Só
depois disso a prancha estará pronta para receber dentro dos traços
feitos as cores da têmpera.
A têmpera é uma mistura de água, gema de ovo
e limão na qual se acrescentará pigmento de cores variadas conforme a
cor que o iconógrafo quer para a composição da imagem. Estes pigmentos
são normalmente pós coloridos de origem mineral (carbonatos, silicatos,
óxidos, etc) ou orgânicos extraídos de
plantas e animais. Ou seja na composição material do icone
encontramos reunidos os três remos da Criação o mineral o vegetal e o
animal. Mas não poderá haver nenhum elemento sintético tudo é
rigorosamente natural. como uma espécie de recriação da natureza para
expressar uma realidade espiritual.
As cores também têm o seu cânone, não se
podem mudar as cores que estão no original, pois todas têm um
significado simbólico. Por exemplo, o branco simboliza a divindade; o
azul a transcendência; o verde a natureza, o crescimento, a fertilidade e
esperança; o marrom a densidade da matéria; o vermelho, a
incandescência e o fervor; a púrpura a riqueza espiritual; o ocre ou
dourado a cor do céu. Aliás, uma das técnicas de composição é misturar
um pouco de ocre com todas as cores e assim atingir-se uma impressão de
unidade em toda a obra. O pigmento preto é interditado, as cores escuras
que se vê em alguns ícones são conseguidas a partir da mistura do
marrom, do verde e do azul.
Para se conseguir a imagem que se quer é preciso levar
em conta algumas regras. Começa-se pintando das bordas para
o centro, de cima para baixo e das cores escuras para as claras,
a luminosidade do olhar é rigorosamente a última coisa a se
fazer antes da inscrição que se aplica na pintura para identificar
o ícone.
É preciso também manter rigorosamente a
representação dos objetos constitutivos do ícone. O iconógrafo não é
livre para compor a imagem, ela já está, a longo tempo, determinada pelo
Episcopado da Igreja. O iconógrafo não realiza a sua obra, é ele que se
submete ao serviço que se propôs, é na verdade um exercício de ascese.
Mas, inegavelmente sempre haverá algo de sua alma no trabalho. Apesar do
artista não assinar seu trabalho, é possível identificarem-se
determinados autores de ícones bem característicos (Roublev, por
exemplo) . O espírito e o temperamento de um povo, onde o ícone é
realizado, também é possível se reconhecer (ícones russos, gregos,
coptas, etc)
É preciso saber ainda que na Igreja Ortodoxa
o simbólico não é algo estéreo ou abstrato, é sempre encarnado, tem
sempre que ter uma correspondência com o mundo real. Com a arte
iconográfica também é assim.
O ícone tem duas particularidades,
interessantes de se conhecer. Características que o fazem ser algo
verdadeiramente vivo. A primeira é relativa a composição material desta
prancha, junto com a aplicação da têmpera nela, este conjunto faz que a
imagem não seja uma coisa estática, mas ao contrário, dinâmica. Com o
passar dos séculos estas cores vão penetrando no gesso, e vai tomando
urna textura, uma intensidade de luz e uma coloração toda própria, o que
fará de cada trabalho uma obra única que não poderá ser integralmente
copiada. A outra característica é que a arquitetura e os objetos são
pintados em dissonometria5 e toda a perspectiva é invertida. Ou seja o
ponto de fuga não está na profundidade da imagem e sim fora da pintura.
O que isso significa para o observador? É
que quando se contempla um ícone, mesmo que o racional não perceba, o
mais profundo da alma pressente que se está dentro da imagem, fazendo
parte de uma realidade que tem outros princípios e outra lógica,
descobre-se, de fato, que se faz parte integrante da Beleza que Se
revela.
Bibliografia:
1. Leonide Uspenskij — La theologie de L´ ícone dans l ’ Eglise orthodoxe,
Editions. Du Cerf, 1982, Paris, pg. 174.
2. Aquele que destrói imagem
3. Favie Evdokimov — La conoscenza de Dio secondo la tradicione orientale, Roma,
1983, pg. 124.
4. Iconógrafo russo do século XV, famoso por ter escrito o ícone «A
Hospitalidade de Abraão», no qual a Igreja vê um símbolo da Ssma. Trindade.
5. Os objetos construções e paisagens não estão em harmonia métrica.
PARA SABER MAIS:
Paul Evdokimov — «La teologia della Beleza», Roma, 1971.
Irmã Maria Donadeo -«Os Icones», Ed. Paulinas, 1996 e «Iconos de Cristo e dos Santos», 1997.
Egon Sendler S.j. - «L’lcône, imagem do Invisíve»,
Colietion Christus, N° 54 — Desclêe de Brouwer, 1987.
Fonte:
Extraído do «Boletim Interparoquial da Diocese do Rio de Janeiro e Olinda-Recife,
da Igreja Ortodoxa Autocéfala da Polônia no Brasil» - Ed. Out-2007, pp. 12-19.
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